Professor autor: entre a reutilização de aulas e o direito à autoria docente

Em 2020 a rotina de todos os estudantes no Brasil foi alterada drasticamente pela pandemia do COVID-19. Rapidamente a aula que antes era vista como teórica, passou a fazer saudade no estudante que precisava seguir sua rotina horária à frente de um computador ou dispositivo que possibilitasse a transmissão por vídeo da relação entre aluno, colegas, conteúdo e principalmente, com o professor.

O docente, por outro lado, se viu de frente ao desafio de mediar processos educacionais por diversas maneiras que não fossem o habitual realizado em sala de aula. Diversas plataformas educacionais que antes eram incipientes no ensino básico – e desenvolvidas com foco principal no ensino superior – foram disponibilizadas para o professor e seus estudantes, naquele momento a partir da educação infantil. Os pais e responsáveis passaram a participar mais da rotina educativa de seus filhos assim como também tiveram que aprender a operar esses novos meios de realização das aulas ou, ao menos, aprender a conviver com eles.

Estudando desenho vetorial, 2023
by Gustavo Pommerening

CC BY 4.0.

Os professores passaram a elaborar suas aulas, às vezes se desvencilhando de antigas estratégias, criando remixes de novas formas de ensino para mediar as relações entre estudantes e os conteúdos.

Podemos considerar os professores autores de todas as suas aulas, tanto antes como após a pandemia. O que muda diante da quarentena é a gravação dessas criações didáticas e reutilização dessas sem o devido crédito para seus autores, inclusive quando são desligados da instituição de ensino. Por mais que as metodologias e recursos pedagógicos estejam à disposição de todos, é o professor quem mixa suas funcionalidades e somada à sua didática e a relação com os alunos produz uma aula. Logo, podemos assumir que esse professor é autor e titular de todas as suas aulas. A grande diferença é a possibilidade dessa ser reutilizada, o que não aconteceria caso não houvesse gravação. Diante disso, seria correto a escola reutilizar as aulas desse professor autor sem o devido crédito ou autoria?

Segundo o artigo 7º da Lei nº 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais) a obra audiovisual é passível de proteção, ou seja, o professor está assegurado de ter sua obra protegida, salvo a cessão desses direitos autorais para a instituição de ensino ressalvado em cláusulas contratuais específicas. Ademais, a preservação do direito moral da autoria é algo irrenunciável, sendo necessária a menção sempre que utilizadas suas obras, suas aulas. Isso, em princípio, evita com que a obra seja modificada, mantendo assim as suas escolhas didáticas feitas tanto ao longo da preparação da aula quanto no seu decorrer, em razão das relações estabelecidas com os estudantes e o conteúdo.  

Por outro lado, o professor autor pode tomar determinadas providências para que suas obras (como video aulas) sejam compartilhadas abertamente, ainda assim evitando que sejam utilizadas indevidamente, tanto no sentido patrimonial quanto no sentido moral dos direitos de autoria. Nesse sentido, falamos das licenças abertas de uso, indicando, por exemplo, a demanda por atribuição de autoria (CC BY), por uso não comercial (CC NC) e sem que haja modificações em suas obras (CC ND). É importante notar aqui que Creative Commons não protege conteúdo mais que o direito autoral padrão. Qualquer um ainda pode se utilizar do que está online sem pedir permissão ou respeitar as regras. A diferença é que com licenças livres você reconhece esse problema e declara seus critérios publicamente, com afã de compartilhar.

Orwell Corner Historic Village, Prince Edward Island, 2007 Buddha Dog CC BY-SA 2.0.

Para os estudantes que consumiram esses conteúdos em tempo real durante a pandemia, tais práticas foram o único caminho no sentido de não abandonar o ciclo escolar e romper com progressões entre anos e séries.

No entanto, em 2022, quando as atividades escolares voltaram ao normal, muitos professores perceberam o atraso nos níveis de aprendizagem provocados pelo contexto emergencial de suspensão das aulas presenciais. O legado das aulas remotas abriu espaço para reutilização de materiais pedagógicos bem como práticas que facilitaram os processos de ensino, aprendizagem e avaliação dos estudantes. Hoje, a reutilização ou utilização de video aulas para diferentes grupos de estudantes mostra-se como prática alternativa viável para muitos professores e instituições de ensino.

Porém, é importante frisar que um plano de aula pode até ser preparado para diversas turmas, mesmo no ensino fundamental II, por exemplo. O professor pode até ter a mesma ideia do que irá falar ou mediar em determinada turma, porém o que acontecerá durante aquele momento de 50 minutos, com grupos e pessoas que possuem diferentes experiências de vida e concepções sobre o assunto, nunca será a mesma coisa.

Além disso, o amplo acesso a ferramentas de inteligência artificial promove ambiente confortável para os estudantes lograrem êxito em processos avaliativos de maneira ilícita. Até a escrita que antes era copiada no caderno agora pode ser facilmente copiada e colada no trabalho de escola. Isso faz com que alguns professores fechem os olhos para a personalização de suas aulas, fruto de sua autoria imbuída de estratégias didáticas, estilos de ensino e conhecimentos íntimos sobre os perfis de suas turmas.

Para os alunos que não possuem a maturidade de perceber padrões e receitas de bolo sendo utilizados para o ensino e aprendizagem, o refúgio está na IA, no Youtube e em outros meios de divulgação de conteúdo. E para os alunos que possuem tais níveis de maturidade, é importante manter as práticas dessa forma para que o objetivo de “passar de ano” seja conquistado.

No fundo, as video aulas não deveriam ser repassadas para novos estudantes e sim deveriam ser assistidas por novos professores. O princípio de remixar saberes e práticas de ensino ainda é a atitude mais autoral presente no trabalho de um professor que se preocupa com o aprendizado de seus alunos. Fica posto então, um paradoxo para as instituições de ensino: como fomentar a autenticidade e assegurar a autoria de seus professores por meio de práticas continuadas como a descrita anteriormente sem perder a liberdade e economia da reutilização de obras (video aulas) com seus estudantes?

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