Memórias e descobertas sobre o software livre

Paula Cardoso

Tento resgatar a essência daquela jovem blogueira dos anos 2000 que usava o WordPress sem ainda compreender sua profundidade — apenas como um meio para expressar ideias. E, cá estou eu, retomando a escrita em um "blog" já no primeiro período do mestrado — ironia ou destino?

Esse reencontro com a escrita despertou memórias afetivas. Fui atrás do meu antigo blog – Solilóquio – nome perfeito para uma adolescente que, como toda blogueira iniciante, dialogava mais consigo mesma do que com um público. Lembrei dos templates personalizados, das linhas de HTML improvisadas e, olhando para trás, percebo que já estava do lado de cá: o dos usuários beneficiados pelo movimento software livre, muito antes de eu entender seu significado. Na época, me sentia genial por dominar códigos básicos e transformar sentimentos juvenis em posts, fotos e layouts.

Four Freeedoms by Free Software Foundation is marked CC0 1.0 Universal

Ao revisitar essas memórias, conecto-as às quatro liberdades do software livre — uso, cópia, modificação e redistribuição – como Sérgio Amadeu traz esses conceitos em seu livro Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento e compreendo, enfim, que eu fazia parte de uma comunidade que democratizava o conhecimento, mesmo sem eu saber.

Diferente do software proprietário, que exige licenças restritivas, o software livre tem como essência a liberdade. É curioso como algo tão transformador passou despercebido por mim (e talvez por muitos outros). Agora, não apenas me reconecto a essa ideia, mas a estudo formalmente, justamente ao ingressar no Ensino Superior Público. Entendo que as quatro liberdades são empregadas desde que o código do software é aberto, ou seja, seja passível de uso e modificação e seja redistribuído novamente com o mesmo tipo de licença.

Essa descoberta me fez pensar no processo de alfabetização: uma criança, ao aprender a escrever, mistura sons e símbolos — como confundir “Hto” com “GAto”, porque o “agá” do H ecoa o “ga” de “GAto”. Aos poucos, ela entende a lógica por trás das letras. Essa metáfora me define em relação à aprendizagem nesse momento: eu era o “Hto” quando ainda só escrevia em um blog, e agora, passo a passo, sinto evoluir para “GAto”, pois estou me apropriando de novos conceitos.

Movida por essa vontade de aprender, explorei o Portal do Software Público (PSP) voltado para modernizar a gestão pública. Alguns desses softwares usados principalmente nos ambientes escolares, a exemplo do I-Educar voltado para a gestão. Essa modernização é impulsionada pela colaboração e comunidade, e, claro, pelo código aberto que permite constantes atualizações e melhorias. Mas aqui está o paradoxo: em um mundo que se diz hiperconectado, por que levei tanto tempo para conhecer esse movimento que nos oferece liberdade e ainda está pautado pela proteção de nossos dados? O conhecimento está na rede, mas precisamos de bússolas para alcançá-lo. E no meio dessas reflexões, cá estou eu, de volta ao WordPress, plataforma que hoje roda 43% da web, com código aberto, ou seja, um software livre provando que ainda há espaço para criar, aprender e compartilhar conhecimento na rede.

Em família, iniciei uma conversa sobre software livre com questionamentos básicos: se conheciam ou já ouviram sobre o assunto, se sabiam o que é, etc, etc… Os mais velhos, na faixa dos 60 a 80 anos de idade não tinham ideia do que se tratava e sempre terminam com respostas do tipo ‘essas coisas de tecnologia, sei de nada, não!’. E os que estavam entre os 20 a 30 anos tinham ideias diversas, enquanto dividiam a vaga ideia do que era – ‘algo como o Linux’. Os mais novos não se aprofundaram para entender o que realmente é, e os mais velhos do grupo tiveram um pequeno contato há muito tempo e desistiram pois parecia muito ‘ coisa de programador’.

Durante essa pequena interação, interrompida por outro assunto à mesa do almoço, retorno à pergunta – por que levei tanto tempo para conhecer esse movimento que nos oferece liberdade e ainda está pautado pela proteção de nossos dados?- ainda sem resposta, ou, com uma resposta ainda turva já que muitas outras perguntas surgem. A reflexão de que talvez o senso comum sempre chegue primeiro – a utilização de softwares gratuitos e proprietários – mas que oferecem ameaças e potenciais problemas: como a utilização de nossos dados, cobrança de taxas para seguirmos utilizando-os. Um exemplo são as ferramentas oferecidas pelo Google: ao criarmos uma conta de e-mail — que é distribuída gratuitamente com armazenamento de até 15GB — registramos alguns dados iniciais. A partir desse primeiro contato, passamos a utilizar outros serviços, como o Google Fotos, vinculado à mesma conta. O mesmo acontece com o Google Drive, o Google Agenda Google Maps e outras ferramentas, sempre aproveitando o armazenamento gratuito. No entanto, quando esse espaço se esgota, somos obrigados a pagar para continuar acessando os próprios materiais que inserimos nessas plataformas. E após termos entregue tantas informações a essas plataformas somos obrigados a pagar para termos acesso aos próprios conteúdos que armazenamos após termos cedido mais dados do que deveríamos: nossa rotina, rotas, fotos, textos, documentos, preferências.

Penso nas formas como poderíamos promover o software livre, para que talvez, futuramente, ele se tornasse senso comum. Em algum momento, ou de alguma forma, poderia até virar uma trend em alguma rede social: muita gente conheceria, comentaria; talvez sem entender o conceito com profundidade. No fim das contas, o desejo é que possamos, a cada dia, utilizar ferramentas e plataformas seguras — já que fazem parte das nossas vidas — e que o senso comum se voltasse para algo apresentado por uma boa narrativa.

Ter conhecimento sobre o software livre é poder fazer uma escolha consciente, tanto no cuidado com os nossos dados quanto, quem sabe, no envolvimento com a construção de algo coletivo e para o coletivo. Mas será que estamos realmente dispostos a viver tudo isso, ou continuaremos apenas nos encaixando nos moldes atuais de entrega de dados? Como se, por ser gratuito, não importasse a segurança — muito menos entender como o software é operado.

Por fim, é possível pensar que existem, sim, opções para melhorar o mundo, inclusive no contexto da tecnologia. Mas, como em tantas outras causas, infelizmente nem sempre fazemos as melhores escolhas.

E dessa forma podemos sonhar, em algum momento, num futuro não tão distante, nossa primeira opção fosse o software livre? Em um contexto mais informal, quem sabe educadores comecem — ou voltem — a escrever em seus blogs, inaugurando um tempo em que o software livre seja a melhor e mais decente escolha que se pode fazer para navegar e criar na esfera digital.

Free_Software_Free_Society.jpg © 2002 by Jonathan Richard is licensed under CC BY 4.0

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