Quando era mais novo, eu costumava juntar pedaços de vídeos com músicas que gostava. Fazia isso por diversão, sem pensar muito. Pegava um trecho de um filme, colocava uma música por cima, às vezes uma legenda, e achava incrível ver como algo conhecido podia se transformar em outra coisa. Hoje percebo que aquilo já era uma forma de remix, mesmo sem saber o nome certo pra isso.

Essa lógica de pegar algo pronto, editar, reorganizar e criar algo novo está cada vez mais presente no nosso dia a dia. A cultura digital funciona assim. A gente compartilha, comenta, refaz, adiciona camadas. O conteúdo vai sendo moldado pelas mãos de várias pessoas. A autoria deixa de ser algo isolado e vira uma construção coletiva.
Italo Calvino já falava sobre o papel ativo do leitor na construção do sentido da obra. Para ele, ler não era apenas receber uma mensagem pronta, mas participar da criação do significado. No romance Se um viajante numa noite de inverno, por exemplo, o leitor é tratado como protagonista da história, sendo levado a completar sentidos, preencher lacunas e montar o enredo. A leitura, para Calvino, é uma experiência aberta, onde o leitor também se torna, em parte, autor. Isso se conecta muito com o hipertexto que usamos hoje na internet. Um caminho de leitura que não é linear, mas cheio de desvios e possibilidades. Cada pessoa lê, clica, interpreta e continua a história de um jeito.
Leonardo Villa-Forte também traz uma discussão interessante sobre apropriação na literatura. Ele mostra como muitos autores contemporâneos constroem seus textos a partir de outros, usando colagens, recortes, deslocamentos. Não é cópia. É um tipo de criação que se apoia no que já existe, para gerar algo novo.
A teoria do remix, apresentada por Eduardo Navas, contribui significativamente para a compreensão das práticas criativas contemporâneas, especialmente no contexto da cultura digital. Para o autor, o remix é definido como “uma cola cultural” (a cultural glue), expressão que sintetiza seu papel aglutinador e transversal em diferentes domínios da produção midiática (NAVAS, 2012). Tal concepção destaca o remix como um mecanismo que opera para reorganizar, recontextualizar e atribuir novos sentidos a materiais preexistentes, sendo potencializado pelo avanço das tecnologias digitais e pela lógica da circulação em rede.
Essa perspectiva é aprofundada por Lev Manovich, que, ao analisar os princípios fundamentais das novas mídias, destaca a modularidade como característica estruturante da cultura digital. Segundo o autor, “artefatos digitais são frequentemente compostos por múltiplos componentes… esses componentes mantêm suas identidades individuais e podem ser reunidos em outros artefatos” (MANOVICH, 2001, p. 30, tradução minha). A partir dessa lógica, compreende-se que o remix opera como um modo de produção cultural baseado na fragmentação, recombinação e atualização constante de signos e significados.
Mas isso também levanta questões importantes para a educação. Por que, mesmo vivendo na cultura digital, a escola ainda preza a produção original? Por que a ideia de autoria única ainda é tão valorizada? Nesse sentido, Lawrence Lessig fala de duas culturas: uma que só consome e outra que consome e cria. A cultura digital em que vivemos claramente pertence à segunda.
Claro que há desafios. Até que ponto é legítimo reusar? Onde entra o respeito à autoria? A criação perde força quando ela se apoia demais no que já existe? Ou será que o verdadeiro valor está em saber transformar o que já foi feito em algo com novo sentido?
Talvez a utopia esteja em reconhecer que a criação é coletiva. Que remixar também é pensar, refletir e propor. E que, ao reusar com intenção e cuidado, a gente participa de uma conversa cultural mais ampla.
Como dizia Jean-Luc Godard não importa de onde você tirou, mas pra onde você leva. E talvez essa seja uma boa forma de entender o nosso papel hoje como criadores e participantes dessa cultura.
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