Política Nacional de Educação Digital (PNED) e Educação Aberta: uma utopia impossível?

Política Nacional de Educação Digital (PNED) © 2025 by Chatgpt com licença CC BY 4.0, Rodrigo Oliveira Jr.

No presente texto, pretendo colocar em questão as possibilidades de diálogo entre a Política Nacional de Educação Digital (PNED) e a Educação Aberta. O interesse nessa reflexão surge por conta do meu tema de pesquisa no doutorado, que enfoca a implementação da PNED pelo Ministério da Educação (MEC) e pelas entidades de representação nacional de gestores dos sistemas subnacionais de educação, quais sejam: Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).  

A Política Nacional de Educação Digital (PNED), instituída pela Lei nº 14.533/2023, tem como objetivo promover a inclusão digital, a inserção da educação digital nos ambientes escolares, a capacitação profissional e o desenvolvimento de competências digitais na educação brasileira. Essa política se propõe a articular projetos, programas e políticas dos três entes federativos (União, Estados e Municípios) voltados ao acesso da população a recursos, ferramentas e práticas digitais.

A política tem um eixo específico que trata da educação digital no espaço escolar, que visa promover o letramento digital e informacional e a aprendizagem de computação, de programação, de robótica e de outros temas, tais como: pensamento computacional, mundo digital, cultura digital, direitos digitais e tecnologia assistiva.

A PNED delimita as competências atinentes à Cultura Digital da seguinte maneira: envolve aprendizagem destinada à participação consciente e democrática por meio das tecnologias digitais, o que pressupõe compreensão dos impactos da revolução digital e seus avanços na sociedade, a construção de atitude crítica, ética e responsável em relação à multiplicidade de ofertas midiáticas e digitais e os diferentes usos das tecnologias e dos conteúdos disponibilizados. Esse conceito de Cultura Digital é semelhante ao apresentado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC): documento normativo que versa sobre as aprendizagens essenciais que a educação básica brasileira precisa proporcionar aos seus estudantes. Portanto, a Cultura Digital é um desses aprendizados essenciais, ou seja, os processos de ensino-aprendizagem devem ser capazes de formar estudantes com um olhar reflexivo, crítico e ético em relação às tecnologias digitais.

Logo, poderíamos ter um educando que problematiza o uso compulsório de certas plataformas digitais, de propriedade de grandes empresas tecnológicas com sede em outros países, as quais têm acesso as suas informações pessoais e de navegação, e a partir delas conseguem bombardeá-los com anúncios e conteúdos patrocinados que oferecem os mais diversos produtos e serviços. Ademais, os educandos e docentes teriam os subsídios necessários para escolher plataformas digitais flexíveis que pudessem ser customizadas para atender as necessidades e especificidades das práticas e processos pedagógicos, no intuito de potencializar as contribuições das ferramentas e recursos digitais para melhoria da qualidade da educação.

Mas essa perspectiva reflexiva e crítica não é algo simples de disseminar, considerando que a própria lógica das plataformas induz a uma adesão “não problematizadora” se levarmos em consideração a perspectiva adotada por Thomas Poell, David Nieborg e José Van Dijck (2020, p. 4) (https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/fem.2020.221.01).

Assim, definimos plataformas como infraestruturas digitais (re)programáveis que facilitam e moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados.

A plataformização seria o processo de organização das relações econômicas, governamentais, sociais, culturais em torno das plataformas.

Seguindo pesquisas em estudos de software, na área de negócios e na economia política, compreendemos plataformização como a penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais de plataformas em diferentes setores econômicos e esferas da vida. E, a partir da tradição dos estudos culturais, concebemos esse processo como a reorganização de práticas e imaginações culturais em torno de plataformas (Poell; Nieborg; Dijck, 2020, p. 5).

Recursos Educacionais Abertos (REA) © 2025 by ChatGPT com licença CC BY 4.0, Rodrigo de Oliveira Jr.

Os autores ressaltam que as relações são inerentemente assimétricas entre operadores de plataforma, usuários finais e complementadores. São estruturadas por relações desiguais de poder. As plataformas se utilizam da integração a vários dispositivos (smartphones, smartwatches, eletrodomésticos, carros autônomos) para transformar a interação humana em dados (dataficação) e metadados comportamentais, os quais são disponibilizados (comercializados, vendidos).  As plataformas estabelecem arranjos mercadológicos que ditam a distribuição de poder econômico e de riqueza, pautados pelo Efeito de Rede, com alta tendência a concentração, a exemplo da loja de aplicativos, monopolizada pelas big techs Apple e Google.

A Educação Aberta é uma proposta paradigmaticamente oposta ao modelo da plataformização e da concepção hegemônica das tecnologias enquanto artefatos inerentes às relações mercadológicas e privatistas, as quais reforçam desigualdades, injustiças, iniquidades – próprias do sistema metabólico de reprodução do capital. Em contraponto, a Educação Aberta sustenta princípios éticos pautados pela colaboração, coletividade, co-criação, inclusão, liberdade, horizontalidade das relações.

A Educação Aberta, conforme Sebriam, Markun e Gonsales (2017), está alicerçada no movimento open, cujo embasamento se dá pela liberdade de usar, distribuir e modificar trabalhos e obras culturais, científicas e tecnológicas livremente, e tem no software livre seu referencial mais recente e consolidado.

Furtado e Amiel (2019, p.8), na publicação Guia de Bolso da Educação Aberta, conceituam a Educação Aberta desta maneira:

Movimento histórico que busca atualizar princípios da educação progressista na cultura digital. Promove a equidade, a inclusão e a qualidade através de práticas pedagógicas abertas apoiadas na liberdade de criar, usar, combinar, alterar e redistribuir recursos educacionais de forma colaborativa. Incorpora tecnologias e formatos abertos, priorizando o software livre. Nesse contexto, prioriza a proteção dos direitos digitais incluindo o acesso à informação, a liberdade de expressão e o direito a privacidade.

O PNED e a Educação Aberta

Dessa forma, coloca-se a problematização sobre as possibilidades de convergência da Educação Aberta e da Política Nacional de Educação Digital (PNED). A PNED trabalha com referenciais que dialogam com a Educação Aberta, tais como: inclusão digital; participação democrática; construção de atitude crítica, ética e responsáveis; direitos digitais; proteção de dados; conectividade segura.

Ainda no âmbito das políticas nacionais de educação, o Plano Nacional de Educação (PNE 2014 – 2024), aprovado pela Lei nº 13.005, de 25/06/2014, prevê estratégias que estimulam a utilização preferencial de Recursos Educacionais Abertos (REA) e softwares livres, são eles:

5.3) selecionar, certificar e divulgar tecnologias educacionais para a alfabetização de crianças, assegurada a diversidade de métodos e propostas pedagógicas, bem como o acompanhamento dos resultados nos sistemas de ensino em que forem aplicadas, devendo ser disponibilizadas, preferencialmente, como recursos educacionais abertos;

7.12) incentivar o desenvolvimento, selecionar, certificar e divulgar tecnologias educacionais para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio e incentivar práticas pedagógicas inovadoras que assegurem a melhoria do fluxo escolar e a aprendizagem, assegurada a diversidade de métodos e propostas pedagógicas, com preferência para softwares livres e recursos educacionais abertos, bem como o acompanhamento dos resultados nos sistemas de ensino em que forem aplicadas;

O Projeto de Lei nº. 2.614/2024, que dispõe sobre o novo PNE, incluiu Eixo 7 sobre “Conectividade, Educação para as Tecnologias e Cidadania Digital”, o qual também consigna o incentivo ao uso preferencial dos REA na educação.

Estratégia 7.2.: Selecionar, certificar, divulgar e incentivar o desenvolvimento de tecnologias educacionais, em especial para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, e com deficiência, preferencialmente como recursos educacionais abertos, asseguradas a diversidade e a qualidade de métodos e propostas pedagógicas, com o propósito de garantir a aprendizagem efetiva dos estudantes.

A Política de Inovação Educação Conectada, instituída pela Lei nº 14.180, de 01/07/2021, estabelece ação específica de fomento ao desenvolvimento e à disseminação de recursos didáticos digitais, preferencialmente em formato aberto. O Ministério da Educação (MEC) disponibiliza plataforma colaborativa em software livre intitulada MEC RED, na qual o internauta/usuário pode buscar e baixar recursos digitais, acessar materiais de formação e publicar os próprios recursos educacionais.

Portanto, no âmbito normativo das políticas educacionais nacionais, já existem dispositivos que preveem e incentivam a adoção de Recursos Educacionais Abertos (REA) e de softwares livres pelos sistemas e unidades de ensino, mas é claro que há um grande lobby das empresas de tecnologia em direcionar as políticas educacionais de integração de tecnologias digitais, a exemplo da PNED, para o campo de atuação do mercado, e assim abocanhar parte do fundo público com a venda de licenças, ferramentas, aplicativos e recursos tecnológicos.

Um exemplo, que vivenciei enquanto servidor do Ministério da Educação (MEC), foi o desenvolvimento de plataforma digital, em parceria com universidades federais, em ambiente aberto e colaborativo, que ofertava soluções tecnológicas da Google e Microsoft, cujas licenças foram adquiridas pelo MEC, para apoiar as redes estaduais e municipais de educação na implementação de aulas e atividades pedagógicas não presenciais no contexto da pandemia de Covid-19.

Tentando avançar ao cerne da questão proposta neste texto, a própria realidade já indica que é possível sim que os princípios da Educação Aberta estejam presentes nas políticas educacionais, inclusive na Política Nacional de Educação Digital (PNED), bem como a utilização de Recursos Educacionais Abertos e de software livre. Entretanto, será necessário que as instituições públicas (MEC, CAPES, CNPq, MCTI, Instituições Públicas de Educação Superior – IPES) reconheçam e promovam a Educação Aberta por meio de:

a) financiamento de pesquisas aplicadas e de projetos de extensão que possam formar professores e alunos das redes públicas sobre Educação Aberta e suas tecnologias.

b) definição de diretrizes normativas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) que animem e estimulem as redes municipais e estaduais de educação a adotarem as tecnologias digitais abertas.

c) constituição de rede nacional de pesquisadores e pesquisadoras em Educação Aberta que promova eventos acadêmicos e científicos regulares.

d) criação de revista científica específica sobre a Educação Aberta.

e) oferta de cursos de formação continuada para os profissionais do magistério público em articulação com sistemas de ensino.

f) inclusão da Educação Aberta, das REA e dos Softwares livres nas diretrizes curriculares de formação inicial dos profissionais do magistério da educação escolar básica.

g) realização de olímpiada nacional de seleção e premiação de projetos de soluções tecnológicas abertas para a educação pública.

Mas a promoção e a disseminação da Educação Aberta está restrita às instituições públicas? Não! Porém são essas instituições que detêm poder e recursos materiais e simbólicos para fazer frente à ofensiva das big techs de domínio da educação pública com suas plataformas, ferramentas, recursos digitais. Se queremos apostar em futuro menos dependente e mais justo, equânime e solidário, temos que necessariamente investir em uma educação de qualidade que incentive a resolução refletiva, crítica e coletiva de problemas a partir dos conhecimentos, técnicas e tecnologias ressignificados pela e para a realidade de um país do sul global do capitalismo, altamente desigual, cujas instituições democráticas ainda estão em processo de consolidação, com racismo e outras formas de preconceito/discriminação presentes (em menor ou maior grau) em todas as estruturas sociais, que dispõem de riquezas naturais em disputa pelas grandes corporações mundiais.

Comentários

Ainda no âmbito de atuação do Ministério da Educação, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) desenvolve o Programa Formação pela Escola que oferece curso, também no formato aberto, na modaladiade à distância para capacitar e desenvolver técnicos e gestores educacionais no desenvolvimento de políticas públicas.

Aberto significa desbloquear tudo o que for possível para a educação, no ambiente digital crescente e conectado à internet, capacitando cada pessoa a usar, editar e compartilhar livremente a qualquer momento, em qualquer lugar e em qualquer formato, respeitando os princípios desta abertura. Várias práticas da educação aberta podem ser identificadas no Formação pela Escola, por exemplo, a gratuidade, acesso aberto, a cópia, a utilização para outros fins educativos e não lucrativos, dentre outras.

Mas ainda podemos avançar mais, os cursos do Formação pela Escola não possuem a licença Creative Commons (CC): licenças que permitem aos criadores de conteúdo compartilharem suas obras com certas permissões, de forma mais flexível do que a lei de direito autoral, “todos os direitos reservados”. As licenças CC permitem que outros utilizem, distribuam, adaptem, remixem e utilizem para criar outros trabalhos.

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